Resíduos de umidade denunciavam a chuva que acabara de cessar. Estrelas refugiavam-se atrás de nuvens poucas e densas. O ar gelado convidava ao aconchego de confortáveis cobertores; cobertores da certeza de mais um dia cumprido, as pipocas do acaso... só mais uma família feliz. O tic-tac ritmado de meus passos era o som predominante na ruela. Minha respiração ofegante e meu coração descompassado só a mim era permitido ouvir. Sem parar de caminhar, acendo um cigarro, tenho pressa em chegar, dou uma longa tragada, aperto o passo, exalo a fumaça do cigarro misturada com ar condensado, ouço outros passos, outra longa tragada, olho para trás, exalo fumaça, ninguém na rua, continuo ouvindo passos, jogo o cigarro, paro, cessa o eco de meus passos. Passo a recitar um trecho bíblico em voz baixa, pois não consigo pensar nele apenas: Ouve filho, a instrução do teu pai, recebe minhas palavras e quando andares não se estreitarão os teus passos, se correres, não tropeçaras. Não entre na vereda dos perversos nem andes pelo caminho dos maus. Não consigo manter a concentração. Minha mente é um outro ser dentro de mim, livre, que tiraniza minha jornada.
É natal. Não me dou muito bem com épocas festivas. Lembro ter sido em data natalense o roubo de minha criação de psiquídeos (pobres coitados... como estarão alimentando-os?). E foi em data natalícia, há cinco anos, que deixei o lar, contra a vontade de meus pais. Não suportava mais tanta implicância, e completara trinta e três anos naquela ocasião. Há dois tipos de pessoas no mundo: uma, é a que nasceu para viver, para construir uma vida; outra, é a que nasceu para qualquer coisa. Eu sou deste tipo, meus pais são daquele.
Recomeça a chuva, muito mais garoa agora. Pelas janelas descuidadas posso observar as salas rotineiras, iluminadas apenas pela luz multicolorida dos aparelhos de TV, refletida na mobília, em alguns quadros e nos rostos cansados de obrigação. A dona-do-lar recostada no seu senhor que tem o caçula ao colo, a do meio deitada no chão, e o mais velho ouvindo música pelo fone de ouvido. Paro diante de cena tão familiar, naquele ano distante. Lembro de meus tempos de garoto, Venha meu filho, a sopa está na mesa, minha mãe me chama para o prato de todos os dias, Não quero tomar sopa, respondo enjoado, sopa todos os dias. Venha meu filho, está começando o filme, chama a mãe, saboreando um biscoito já sem sabor, Já vou mamãe, responde o mais velho, todo amor, retirando o fone do ouvido.
Minha infância foi um pouco diferente. Estudava no colégio das forças armadas, filho único de uma família de classe média-baixa. Papai trabalhava à noite e mamãe fazia de tudo para ajudar no orçamento. Não tínhamos TV, e minhas poucas noites em casa eram vazias de amor e solitárias de diversão. Tive um único amigo. Minha memória poderia reconstruir cada momento daquele dia em que o perdi para o exército. Papai tentava me consolar, dizendo que a morte é uma coisa natural, que a todos acontece, Devemos encarar a morte como o nascimento para uma vida melhor, dizia. Besteira. Abandonei a carreira militar no mesmo ano, e desde então não consegui manter o mesmo emprego por mais de seis meses. Em casa, a situação tornava-se complicada, cada vez mais, meus valores e interesses foram mudando com o passar do tempo, e a distância entre eu e meus pais foi aumentando, tudo lenta e gradativamente, que é a melhor armadilha para não se perceber as coisas, até que, de repente, parece que um mundo todo desaba, e tudo se mostra tão diferente que você nem ao menos se reconhece, ao ponto de se perguntar aonde esteve todo este tempo.
Naquele vinte e oito de agosto, o dia amanhecera cinzento na vila. Para mim, o dia começara às nove horas. Papai chegara em casa às sete e trinta, como todos os dias, e ainda dormia. Mamãe preparava o almoço. Era domingo, e as três irmãs solteironas de papai viriam em casa para almoçar e falar mal da vida dos outros. Por ser meu aniversário, viriam também os oito irmãos de mamãe e suas respectivas esposas e filhos. Mamãe já me alertara que aquela prima de segundo grau de seu irmão mais velho viria, e que para recebê-la eu deveria me vestir com traje de gala. Mamãe rezava todos os dias para me ver casado com ela, que julgava ser um bom partido. Ninguém havia me consultado para saber se eu queria me casar. Mais um domingo insosso e deprimente.
Antes que o almoço ficasse pronto e antes que minhas tias solteironas, meus tios-fazedores-de-filhos e minha candidata a esposa chegassem, juntei um par de calças, meia dúzia de camisas e algumas cuecas e meias numa mochila de mão, dei um beijo na testa de minha mãe e disse para ela não se preocupar, para pedir desculpas ao pai por não esperar que ele acordasse, e prometi que escreveria. Hoje, passado cinco anos, consegui que respondessem às minhas cartas, onde informam o novo endereço e me convidam para passar o natal junto a eles. Creio não haver mais ressentimentos. Naquela ocasião, acreditava que minha maior mágoa era não poder carregar meus livros e meus discos, e por muito tempo pensei assim. Agora já não sei mais o que é importante na vida.
Sem parar de caminhar, acendo meu último cigarro, tenho pressa em chegar, meus pensamentos são traiçoeiras armadilhas do passado, levo o cigarro à boca, lentamente, dou uma longa tragada, até que a brasa chegue ao seu tamanho máximo, aperto o passo, exalo a fumaça do cigarro misturada com ar condensado, vinte e três horas e trinta minutos, se não me apressar não chegarei antes da meia-noite.
Ganho a rua de meu destino. Estou no número dezessete e preciso chegar ao dois mil quatrocentos e dez. Aperto o passo. Já não é uma viela, mas uma avenida movimentada por onde caminho. Apesar da hora e da data, prostitutas oferecem-se aos menos afortunados que buscam alguns minutos de fingido prazer pelo preço que puderem pagar. Uma ou outra arrisca um gracejo qualquer para mim que, olhando fixamente para a ponta de meus sapatos de bico largo, acelero ainda mais meu passo, sem dar importância às malfadadas. Em diferente oportunidade talvez minha atitude fosse outra, afinal, há tanto tempo não converso com alguém que não seja mobília e personagem de livro.
Preciso me controlar, me vigiar, prestar atenção, medir cada movimento meu, cada impulso, principalmente os impensados, devo abandonar por algumas horas os valores conquistados ao longo dos anos, devo comedir cada pensamento, analisá-lo profundamente antes que chegue à consciência, e lá fazer ainda uma segunda análise, mais rigorosa, imparcial, antes que alcance minha boca em forma de palavra. Preciso comedir minha fala, tão desacostumada a sofrer interpelações, preciso saber a hora de ouvir e ouvir, com cuidado e atenção, se é que me lembro disso. Preciso me preparar para o encontro com meus pais.
Já posso avistar meu destino com a luz da sala acesa. Conforme me aproximo, noto uma certa movimentação dentro da casa. Invado o quintal pelo caminho curvo e branco que leva à porta da frente. Adentro apenas o olhar pela janela e presencio a cena: meu pai repousa entre velas e flores, e seu semblante augusto semelha um aprazível coração. Minhas tias, meus tios, minha ex candidata a esposa, bem mais gorda, e seus três filhos, todos lá, e ainda assim, há uma sensação de solidão em toda a casa, rezas e más notícias. Minha mãe, com os olhos em vermelhão, parece tão suave e tão amor, tão asa à espera de um filhote para agasalhar e consolar, o que ajudaria a ser consolada. Há tristeza por toda a casa soluçante e há muito tempo sem infância, e se há algo de amargo e distante neste quadro, sou eu. Algo me impressiona em meio a isto tudo, nesta noite: o caminho curvo e branco, por onde volta meu coração caminhando à pé.
É natal. Não me dou muito bem com épocas festivas. Lembro ter sido em data natalense o roubo de minha criação de psiquídeos (pobres coitados... como estarão alimentando-os?). E foi em data natalícia, há cinco anos, que deixei o lar, contra a vontade de meus pais. Não suportava mais tanta implicância, e completara trinta e três anos naquela ocasião. Há dois tipos de pessoas no mundo: uma, é a que nasceu para viver, para construir uma vida; outra, é a que nasceu para qualquer coisa. Eu sou deste tipo, meus pais são daquele.
Recomeça a chuva, muito mais garoa agora. Pelas janelas descuidadas posso observar as salas rotineiras, iluminadas apenas pela luz multicolorida dos aparelhos de TV, refletida na mobília, em alguns quadros e nos rostos cansados de obrigação. A dona-do-lar recostada no seu senhor que tem o caçula ao colo, a do meio deitada no chão, e o mais velho ouvindo música pelo fone de ouvido. Paro diante de cena tão familiar, naquele ano distante. Lembro de meus tempos de garoto, Venha meu filho, a sopa está na mesa, minha mãe me chama para o prato de todos os dias, Não quero tomar sopa, respondo enjoado, sopa todos os dias. Venha meu filho, está começando o filme, chama a mãe, saboreando um biscoito já sem sabor, Já vou mamãe, responde o mais velho, todo amor, retirando o fone do ouvido.
Minha infância foi um pouco diferente. Estudava no colégio das forças armadas, filho único de uma família de classe média-baixa. Papai trabalhava à noite e mamãe fazia de tudo para ajudar no orçamento. Não tínhamos TV, e minhas poucas noites em casa eram vazias de amor e solitárias de diversão. Tive um único amigo. Minha memória poderia reconstruir cada momento daquele dia em que o perdi para o exército. Papai tentava me consolar, dizendo que a morte é uma coisa natural, que a todos acontece, Devemos encarar a morte como o nascimento para uma vida melhor, dizia. Besteira. Abandonei a carreira militar no mesmo ano, e desde então não consegui manter o mesmo emprego por mais de seis meses. Em casa, a situação tornava-se complicada, cada vez mais, meus valores e interesses foram mudando com o passar do tempo, e a distância entre eu e meus pais foi aumentando, tudo lenta e gradativamente, que é a melhor armadilha para não se perceber as coisas, até que, de repente, parece que um mundo todo desaba, e tudo se mostra tão diferente que você nem ao menos se reconhece, ao ponto de se perguntar aonde esteve todo este tempo.
Naquele vinte e oito de agosto, o dia amanhecera cinzento na vila. Para mim, o dia começara às nove horas. Papai chegara em casa às sete e trinta, como todos os dias, e ainda dormia. Mamãe preparava o almoço. Era domingo, e as três irmãs solteironas de papai viriam em casa para almoçar e falar mal da vida dos outros. Por ser meu aniversário, viriam também os oito irmãos de mamãe e suas respectivas esposas e filhos. Mamãe já me alertara que aquela prima de segundo grau de seu irmão mais velho viria, e que para recebê-la eu deveria me vestir com traje de gala. Mamãe rezava todos os dias para me ver casado com ela, que julgava ser um bom partido. Ninguém havia me consultado para saber se eu queria me casar. Mais um domingo insosso e deprimente.
Antes que o almoço ficasse pronto e antes que minhas tias solteironas, meus tios-fazedores-de-filhos e minha candidata a esposa chegassem, juntei um par de calças, meia dúzia de camisas e algumas cuecas e meias numa mochila de mão, dei um beijo na testa de minha mãe e disse para ela não se preocupar, para pedir desculpas ao pai por não esperar que ele acordasse, e prometi que escreveria. Hoje, passado cinco anos, consegui que respondessem às minhas cartas, onde informam o novo endereço e me convidam para passar o natal junto a eles. Creio não haver mais ressentimentos. Naquela ocasião, acreditava que minha maior mágoa era não poder carregar meus livros e meus discos, e por muito tempo pensei assim. Agora já não sei mais o que é importante na vida.
Sem parar de caminhar, acendo meu último cigarro, tenho pressa em chegar, meus pensamentos são traiçoeiras armadilhas do passado, levo o cigarro à boca, lentamente, dou uma longa tragada, até que a brasa chegue ao seu tamanho máximo, aperto o passo, exalo a fumaça do cigarro misturada com ar condensado, vinte e três horas e trinta minutos, se não me apressar não chegarei antes da meia-noite.
Ganho a rua de meu destino. Estou no número dezessete e preciso chegar ao dois mil quatrocentos e dez. Aperto o passo. Já não é uma viela, mas uma avenida movimentada por onde caminho. Apesar da hora e da data, prostitutas oferecem-se aos menos afortunados que buscam alguns minutos de fingido prazer pelo preço que puderem pagar. Uma ou outra arrisca um gracejo qualquer para mim que, olhando fixamente para a ponta de meus sapatos de bico largo, acelero ainda mais meu passo, sem dar importância às malfadadas. Em diferente oportunidade talvez minha atitude fosse outra, afinal, há tanto tempo não converso com alguém que não seja mobília e personagem de livro.
Preciso me controlar, me vigiar, prestar atenção, medir cada movimento meu, cada impulso, principalmente os impensados, devo abandonar por algumas horas os valores conquistados ao longo dos anos, devo comedir cada pensamento, analisá-lo profundamente antes que chegue à consciência, e lá fazer ainda uma segunda análise, mais rigorosa, imparcial, antes que alcance minha boca em forma de palavra. Preciso comedir minha fala, tão desacostumada a sofrer interpelações, preciso saber a hora de ouvir e ouvir, com cuidado e atenção, se é que me lembro disso. Preciso me preparar para o encontro com meus pais.
Já posso avistar meu destino com a luz da sala acesa. Conforme me aproximo, noto uma certa movimentação dentro da casa. Invado o quintal pelo caminho curvo e branco que leva à porta da frente. Adentro apenas o olhar pela janela e presencio a cena: meu pai repousa entre velas e flores, e seu semblante augusto semelha um aprazível coração. Minhas tias, meus tios, minha ex candidata a esposa, bem mais gorda, e seus três filhos, todos lá, e ainda assim, há uma sensação de solidão em toda a casa, rezas e más notícias. Minha mãe, com os olhos em vermelhão, parece tão suave e tão amor, tão asa à espera de um filhote para agasalhar e consolar, o que ajudaria a ser consolada. Há tristeza por toda a casa soluçante e há muito tempo sem infância, e se há algo de amargo e distante neste quadro, sou eu. Algo me impressiona em meio a isto tudo, nesta noite: o caminho curvo e branco, por onde volta meu coração caminhando à pé.
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