Esta sensação de independência que chega quase a ser abandono que chega quase a ser solidão sempre acaba me provocando sensações de devassidão nos mais profundos buracos do meu ser, e digo ser porque tais sentimentos se tornam corpóreos, físicos, além do simples sentimento de plano emocional, e se anexam às minhas glândulas, ao meu tecido, e posso senti-los desde o calo debaixo do band-aid em meu tornozelo até o pivô que suporta as incrustações de meus incisivos laterais. Mesmo assim, não costumo ao menos pensar muito nessas coisas… e se penso é de maneira tímida, mesmo para mim, se bem que quando me lanço em alguma aventura, seja ela uma simples paquera ou mesmo uma transa eventual, não costumo manter a mesma timidez que conduzo em meus pensamentos, a não ser que esteja envolvida numa relação, digamos, mais duradoura, e chamo de duradoura qualquer relacionamento que passe de uma simples noite, que valha um telefonema na manhã seguinte e que sobreviva ao segundo encontro.
E não é o caso agora. Livre e desimpedida como estou, talvez devesse me dedicar mais a esses pensamentos impuros e não enrubescer com a devassidão que eles possam me sugerir, e deveria mesmo fazer algo para tentar torná-los reais… mas nem sempre consigo. É o trabalho. Sempre me apoio na desculpa de que o trabalho não me permite tempo suficiente para pensar em mim, em arranjar um namorado decente, que me aceite como eu sou, eu e minha filha, coitadinha, só tem oito anos e sente tanto a falta de um pai, mas não o pai dela, que ao bem da verdade eu nem sei quem é, desconfio, sim, que seja o filho da puta do meu pai, quem me vendeu pela primeira vez, mas bem poderia ser um de seus amigos…
Costumava trazer essa imagem comigo, como se tivesse acontecido ontem, mas com o tempo endureci, acho… e eu só tinha quatorze anos na época… papai tomou a precaução de me vender só depois de checar o material, o filho da puta, ele tinha que ter certeza de que o material, no caso eu, era bom mesmo, então buscou uma segunda opinião… na verdade, buscou também uma terceira opinião, uma quarta e uma quinta, convidou cinco amigos para o banquete. E me apertaram contra o chão, taparam minha boca com suas mão grossas e fedidas, abafaram meus gritos de entranha rasgada, todos em fila, segurando as calças com uma mão e enxugando a baba com a outra, enquanto eu me desfalecia, violada em minhas partes, até mesmo naquelas que eu nem imaginava que serviam para isso. Minha mãe partira havia quatro meses, e até então eu a condenava por isso, mas depois entendi que era a única coisa a ser feita.
Com o tempo superei tudo isso e aprendi meu ofício, embora não fosse de livre arbítrio (o que é isso?) por mim escolhido, aprendi o meu ofício. Aprendi a ser desrespeitada, aprendi a tomar porrada sem motivo aparente, porrada porque demorei para me despir, porrada porque não mexi como devia, porrada porque não dei beijo de língua, porrada porque dei beijo de língua, porrada porque não quis ficar de quatro, porrada porque não chupei direito, porrada porque ele broxou, porrada porque não gozou, porrada porque ele demorou para gozar, porrada porque ele gozou muito rápido, porrada porque estava drogada, porrada porque não estava drogada o bastante, e porrada porque tudo foi bem e ele precisava bater em alguém também... passei por muitos lugares, fiz coisas que ninguém imagina, fiquei postada por horas em vitrines humilhadas, oferecendo meu corpo, esse mesmo corpo que eu tenho que carregar comigo pelo resto da minha maldita vida, com a merda da cara que eu tenho que mostrar em todo maldito lugar que eu vou, e quem passava e via, apertava minha bunda, minhas coxas, meus peitos, para sentir a textura da carne, como num açougue, confirmar se era agradável ao toque, e se ninguém parava, eu mesma tinha que me tocar, no meu íntimo, me excitar a céu aberto, simular orgasmos de gemidos ridículos para atiçar a voracidade de homens bêbados e decadentes, adolescentes curiosos, maridos infelizes e rejeitados em geral.
Até que tudo isso ainda é suportável se comparado às noites na prisão, acuada em cantos de delegacias frente a mesma fila que já bem conhecia desde a infância, cinco, seis policiais, aqueles mesmos que velam pelo bem estar dos cidadãos, regurgitando seu sêmen podre em minha face desolhada, e depois me dispunham a certos detentos privilegiados, em celas imundas, em meio a tantas outras imundícies, eram mais quatro ou cinco, e na manhã seguinte eu saía sem rumo e com meu pudor ainda úmido de saliva e esperma, e quem passava olhava, homens honestos indo trabalhar depois de uma boa noite de sono com suas mulheres honestas, e entre estes, um ou outro que eu encontrara em noites anteriores, em situação diversa e bem menos decente deste simples cruzar, e riam, chacoteavam, sabiam de onde eu vinha e o que eu havia feito, afinal, pelo menos duas vezes por semana eu era recolhida sob as mais diversas suspeitas, com o mesmo e único objetivo de desafogar as perversões de homens de bem ou não, e me escolhiam entre tantas outras porque conheciam minha história, eles sempre sabem de tudo, e por isso me julgavam a mais devassa, a mais perversa em matéria de sexo, que afinal era o meu negócio e o que eles queriam.
Naquela quinta-feira eu acordei mais cedo, às dezoito horas… para quem se deitara às catorze, era muito cedo. Algo não estava bem no ar… um daqueles dias em que você acha que seria melhor não sair de casa, mas o dever lhe chama, e as contas não perdoam… Antes tivesse seguido meus instintos…
“O cadáver apresentava-se parcialmente esqueletizado com exposição dos elementos ósseos da coluna cervical, que se mostrava, em parte, recoberta por tecidos secos, encarquilhados, o tórax estava parcialmente protegido pela superfície tegumentar de tonalidade cinza-escurecida com exposição das cavidades pleurais e com algumas costelas soltas, o abdome tinha grande abertura na metade inferior da face anterior que se prolongava até a região perineal e parte superointerna das coxas, com exposição dos tecidos moles secos, diminuídos de volume, bem como os ossos que correspondem às regiões referidas, órgãos genitais externos distribuídos conforme descrição acima do abdome, nada havendo do tecido mole que pudesse dar elementos para a identificação do sexo.”
Aquele policial filho da puta não pôde entender que eu não estava nos meus melhores dias…
E não é o caso agora. Livre e desimpedida como estou, talvez devesse me dedicar mais a esses pensamentos impuros e não enrubescer com a devassidão que eles possam me sugerir, e deveria mesmo fazer algo para tentar torná-los reais… mas nem sempre consigo. É o trabalho. Sempre me apoio na desculpa de que o trabalho não me permite tempo suficiente para pensar em mim, em arranjar um namorado decente, que me aceite como eu sou, eu e minha filha, coitadinha, só tem oito anos e sente tanto a falta de um pai, mas não o pai dela, que ao bem da verdade eu nem sei quem é, desconfio, sim, que seja o filho da puta do meu pai, quem me vendeu pela primeira vez, mas bem poderia ser um de seus amigos…
Costumava trazer essa imagem comigo, como se tivesse acontecido ontem, mas com o tempo endureci, acho… e eu só tinha quatorze anos na época… papai tomou a precaução de me vender só depois de checar o material, o filho da puta, ele tinha que ter certeza de que o material, no caso eu, era bom mesmo, então buscou uma segunda opinião… na verdade, buscou também uma terceira opinião, uma quarta e uma quinta, convidou cinco amigos para o banquete. E me apertaram contra o chão, taparam minha boca com suas mão grossas e fedidas, abafaram meus gritos de entranha rasgada, todos em fila, segurando as calças com uma mão e enxugando a baba com a outra, enquanto eu me desfalecia, violada em minhas partes, até mesmo naquelas que eu nem imaginava que serviam para isso. Minha mãe partira havia quatro meses, e até então eu a condenava por isso, mas depois entendi que era a única coisa a ser feita.
Com o tempo superei tudo isso e aprendi meu ofício, embora não fosse de livre arbítrio (o que é isso?) por mim escolhido, aprendi o meu ofício. Aprendi a ser desrespeitada, aprendi a tomar porrada sem motivo aparente, porrada porque demorei para me despir, porrada porque não mexi como devia, porrada porque não dei beijo de língua, porrada porque dei beijo de língua, porrada porque não quis ficar de quatro, porrada porque não chupei direito, porrada porque ele broxou, porrada porque não gozou, porrada porque ele demorou para gozar, porrada porque ele gozou muito rápido, porrada porque estava drogada, porrada porque não estava drogada o bastante, e porrada porque tudo foi bem e ele precisava bater em alguém também... passei por muitos lugares, fiz coisas que ninguém imagina, fiquei postada por horas em vitrines humilhadas, oferecendo meu corpo, esse mesmo corpo que eu tenho que carregar comigo pelo resto da minha maldita vida, com a merda da cara que eu tenho que mostrar em todo maldito lugar que eu vou, e quem passava e via, apertava minha bunda, minhas coxas, meus peitos, para sentir a textura da carne, como num açougue, confirmar se era agradável ao toque, e se ninguém parava, eu mesma tinha que me tocar, no meu íntimo, me excitar a céu aberto, simular orgasmos de gemidos ridículos para atiçar a voracidade de homens bêbados e decadentes, adolescentes curiosos, maridos infelizes e rejeitados em geral.
Até que tudo isso ainda é suportável se comparado às noites na prisão, acuada em cantos de delegacias frente a mesma fila que já bem conhecia desde a infância, cinco, seis policiais, aqueles mesmos que velam pelo bem estar dos cidadãos, regurgitando seu sêmen podre em minha face desolhada, e depois me dispunham a certos detentos privilegiados, em celas imundas, em meio a tantas outras imundícies, eram mais quatro ou cinco, e na manhã seguinte eu saía sem rumo e com meu pudor ainda úmido de saliva e esperma, e quem passava olhava, homens honestos indo trabalhar depois de uma boa noite de sono com suas mulheres honestas, e entre estes, um ou outro que eu encontrara em noites anteriores, em situação diversa e bem menos decente deste simples cruzar, e riam, chacoteavam, sabiam de onde eu vinha e o que eu havia feito, afinal, pelo menos duas vezes por semana eu era recolhida sob as mais diversas suspeitas, com o mesmo e único objetivo de desafogar as perversões de homens de bem ou não, e me escolhiam entre tantas outras porque conheciam minha história, eles sempre sabem de tudo, e por isso me julgavam a mais devassa, a mais perversa em matéria de sexo, que afinal era o meu negócio e o que eles queriam.
Naquela quinta-feira eu acordei mais cedo, às dezoito horas… para quem se deitara às catorze, era muito cedo. Algo não estava bem no ar… um daqueles dias em que você acha que seria melhor não sair de casa, mas o dever lhe chama, e as contas não perdoam… Antes tivesse seguido meus instintos…
“O cadáver apresentava-se parcialmente esqueletizado com exposição dos elementos ósseos da coluna cervical, que se mostrava, em parte, recoberta por tecidos secos, encarquilhados, o tórax estava parcialmente protegido pela superfície tegumentar de tonalidade cinza-escurecida com exposição das cavidades pleurais e com algumas costelas soltas, o abdome tinha grande abertura na metade inferior da face anterior que se prolongava até a região perineal e parte superointerna das coxas, com exposição dos tecidos moles secos, diminuídos de volume, bem como os ossos que correspondem às regiões referidas, órgãos genitais externos distribuídos conforme descrição acima do abdome, nada havendo do tecido mole que pudesse dar elementos para a identificação do sexo.”
Aquele policial filho da puta não pôde entender que eu não estava nos meus melhores dias…
voltar para Contos