Olhei pelo janelo... não havia ninguém. Esperei alguns minutos, imóvel, quase sem respirar, tentando ser o menos notável possível, na esperança que algum moleque voltasse para tocar a campainha novamente, mas foi em vão. Voltei para minha leitura de Milton:
Ouço a campainha novamente! Tento me apressar, quase certo que não encontrarei ninguém do lado de fora, mas procuro me apressar mesmo assim, na esperança de ver alguém pelas costas, deixando a cena, mas não há nada. É certo que não sou muito rápido, a idade já não me permite, mesmo com o auxílio da bengala. E ao bem da verdade, por que haveria de ser alguém? A campainha não toca há anos! Mal me lembro do som que ela soa; as contas são passadas por debaixo da porta, nunca vejo meu vizinho de apartamento, não há porteiros ou faxineiras no prédio... não fosse as compras semanais no supermercado da esquina, a porta permaneceria fechada sempre!
Mal deixo o janelo e ouço um bater-de-porta. Num impulso impensado, abro-a e exclamo: - É você Nicanor?!? - Imediatamente me reprimo, envergonhado de ter chamado o nome de Nicanor, e ao mesmo tempo aliviado de não ser ninguém; ninguém presenciara minha ansiedade e expectativa, ambas frustradas.
Nicanor foi um grande amigo. Não saberia dizer se ainda está vivo. Nicanor fora um grande amigo até o dia em que minha arrogância o afastou de mim. Como não percebi antes e como convivi com isso dentro de mim por tantos anos, não saberia dizer... por muito tempo achei que Nicanor não fora leal e camarada comigo. Só 57 anos depois é que vim perceber o meu erro. Mas e agora?, me pergunto... sou uma pessoa amarga e arrependida, e o tempo provou que meus amigos não eram muitos; seja pelos interesses que mudaram com o tempo, ou pela minha falta de tato em lidar com eles; tinha particular dificuldade em tratar de assuntos que não me interessavam. Tudo o que não acordava com as minhas opiniões eu dava um jeito de postergar, pospor aos meus próprios assuntos. O tempo, insaciável, consumiu rapidamente minha juventude, que outrora pensara ser eterna; mostrou-se também cruel por não poder ser retocado, e os frutos plantados no passado foram invariavelmente colhidos no futuro, mesmo que apodrecidos...
Ouço a campainha novamente! Transtornado pelas lembranças, escancaro a porta aos prantos, soluçando o nome do meu ex-melhor amigo, "Nicanor, Nicanor, me perdoe Nicanor, eu era jovem e não sabia o que fazia..." Mas não havia ninguém à porta. É praga do Nicanor, pensei. Praga por eu não ter feito nada para remendar o erro... após 57 anos! O que poderia fazer? É o que sempre me digo... o que poderia fazer?
Nas últimas semanas uma angústia me atormenta... um sonho, sempre igual, com o jovem Nicanor, no auge de seus vinte anos... No sonho, Nicanor está me encarando com tristeza, uma tristeza deslocada, não associada a nenhuma notícia - no sonho eu sei que não há notícias para se entristecer - e pergunto "o que foi Nicanor? Que tristeza é essa?", e ele olha para seu próprio corpo, passa a mão em seu rosto liso, pele tenra, e diz: "eu remocei... e você ainda continua o mesmo velho de sempre...". Este é o momento em que acordo. E vinha sendo assim por dias e dias, mas esta semana os sonhos começaram a se alongar, progressivamente.
No primeiro dia, ao invés de acordar me observo, e percebo que não sou o jovem que era na época; sou o velho de hoje! O espanto e a incredulidade me distraem um pouco da tristeza de Nicanor, mas logo me apercebo dele novamente, pois sua tristeza é contagiante... tento falar com Nicanor mas minhas palavras não saem, e acordo! No dia seguinte, após me aperceber de Nicanor, sinto que ele está numa queda-sem-fim de tristeza. Quero gritar, tentar ajudá-lo a não se entristecer mais, mas não tenho voz, e quanto mais triste Nicanor se torna, mais ele remoça, e eu, proporcionalmente me avelho! E este sonho se repete com prolongações cronológicas; Nicanor passa de adolescente a garoto, de garoto a menino, bebê, e finalmente se transforma num feto... e eu, querendo gritar para que Nicanor me perdoe, desesperadamente me decrepito, encolho, definho, a pele, a carne, os músculos... todo o meu tecido se esvai, menos a consciência... que a tudo observa em detalhes.
E nesta hora quero acordar... procuro me mexer, mas meus músculos não estão mais lá... só os ossos, e não posso mover meus ossos sem músculos, nervos e tendões ligados a eles. Gritar também não consigo, não há mais carne, cordas vocais, voz, não há mais pulsação... só a consciência, viva, cruelmente viva e sabedora de tudo, ciente de todos os detalhes, testemunha de toda a minha vida, que me passa feito um filme, que bem sei acabará nunca...
Já era tarde demais quando morri.
"... And corporeal to incorporeal turn.Gosto de ler em voz alta quando estou só. Há 20 anos leio em voz alta. Sempre só...
For know, whatever was created, needs
To be sustained and fed; of elements ..."
Ouço a campainha novamente! Tento me apressar, quase certo que não encontrarei ninguém do lado de fora, mas procuro me apressar mesmo assim, na esperança de ver alguém pelas costas, deixando a cena, mas não há nada. É certo que não sou muito rápido, a idade já não me permite, mesmo com o auxílio da bengala. E ao bem da verdade, por que haveria de ser alguém? A campainha não toca há anos! Mal me lembro do som que ela soa; as contas são passadas por debaixo da porta, nunca vejo meu vizinho de apartamento, não há porteiros ou faxineiras no prédio... não fosse as compras semanais no supermercado da esquina, a porta permaneceria fechada sempre!
Mal deixo o janelo e ouço um bater-de-porta. Num impulso impensado, abro-a e exclamo: - É você Nicanor?!? - Imediatamente me reprimo, envergonhado de ter chamado o nome de Nicanor, e ao mesmo tempo aliviado de não ser ninguém; ninguém presenciara minha ansiedade e expectativa, ambas frustradas.
Nicanor foi um grande amigo. Não saberia dizer se ainda está vivo. Nicanor fora um grande amigo até o dia em que minha arrogância o afastou de mim. Como não percebi antes e como convivi com isso dentro de mim por tantos anos, não saberia dizer... por muito tempo achei que Nicanor não fora leal e camarada comigo. Só 57 anos depois é que vim perceber o meu erro. Mas e agora?, me pergunto... sou uma pessoa amarga e arrependida, e o tempo provou que meus amigos não eram muitos; seja pelos interesses que mudaram com o tempo, ou pela minha falta de tato em lidar com eles; tinha particular dificuldade em tratar de assuntos que não me interessavam. Tudo o que não acordava com as minhas opiniões eu dava um jeito de postergar, pospor aos meus próprios assuntos. O tempo, insaciável, consumiu rapidamente minha juventude, que outrora pensara ser eterna; mostrou-se também cruel por não poder ser retocado, e os frutos plantados no passado foram invariavelmente colhidos no futuro, mesmo que apodrecidos...
Ouço a campainha novamente! Transtornado pelas lembranças, escancaro a porta aos prantos, soluçando o nome do meu ex-melhor amigo, "Nicanor, Nicanor, me perdoe Nicanor, eu era jovem e não sabia o que fazia..." Mas não havia ninguém à porta. É praga do Nicanor, pensei. Praga por eu não ter feito nada para remendar o erro... após 57 anos! O que poderia fazer? É o que sempre me digo... o que poderia fazer?
Nas últimas semanas uma angústia me atormenta... um sonho, sempre igual, com o jovem Nicanor, no auge de seus vinte anos... No sonho, Nicanor está me encarando com tristeza, uma tristeza deslocada, não associada a nenhuma notícia - no sonho eu sei que não há notícias para se entristecer - e pergunto "o que foi Nicanor? Que tristeza é essa?", e ele olha para seu próprio corpo, passa a mão em seu rosto liso, pele tenra, e diz: "eu remocei... e você ainda continua o mesmo velho de sempre...". Este é o momento em que acordo. E vinha sendo assim por dias e dias, mas esta semana os sonhos começaram a se alongar, progressivamente.
No primeiro dia, ao invés de acordar me observo, e percebo que não sou o jovem que era na época; sou o velho de hoje! O espanto e a incredulidade me distraem um pouco da tristeza de Nicanor, mas logo me apercebo dele novamente, pois sua tristeza é contagiante... tento falar com Nicanor mas minhas palavras não saem, e acordo! No dia seguinte, após me aperceber de Nicanor, sinto que ele está numa queda-sem-fim de tristeza. Quero gritar, tentar ajudá-lo a não se entristecer mais, mas não tenho voz, e quanto mais triste Nicanor se torna, mais ele remoça, e eu, proporcionalmente me avelho! E este sonho se repete com prolongações cronológicas; Nicanor passa de adolescente a garoto, de garoto a menino, bebê, e finalmente se transforma num feto... e eu, querendo gritar para que Nicanor me perdoe, desesperadamente me decrepito, encolho, definho, a pele, a carne, os músculos... todo o meu tecido se esvai, menos a consciência... que a tudo observa em detalhes.
E nesta hora quero acordar... procuro me mexer, mas meus músculos não estão mais lá... só os ossos, e não posso mover meus ossos sem músculos, nervos e tendões ligados a eles. Gritar também não consigo, não há mais carne, cordas vocais, voz, não há mais pulsação... só a consciência, viva, cruelmente viva e sabedora de tudo, ciente de todos os detalhes, testemunha de toda a minha vida, que me passa feito um filme, que bem sei acabará nunca...
Já era tarde demais quando morri.
voltar para Contos