Depois do carnaval vem as cinzas. Depois da bebedeira, a ressaca. Depois da vida, porra nenhuma. Do Rio de Janeiro fizeram cidade, ao Rio de Janeiro fizeram maldade, tanta maldade que foi preciso por um Cristo pra tomar conta, e as Ipanemas não têm mais garotas, só meretrizes, mas tudo bem. As poças dágua são esgotos a céu aberto, e aquela boa média com pão e muita manteiga também não se toma mais, só leite com guaraná e alfajores. Vou atrás do que me interessa.
Covinha acabara de chegar ao boteco do Mané. Pediu duas cervejas e três copos, um para ele, um para o Mané e outro para mim. Era um cara magrinho, tão miúdo que chegava a ser confundido, de costas, com um moleque. Chamavam-no Covinha pelas duas cavidades mais profundas que apresentava no rosto, uma em cada bochecha, feitas por um tiro de 32 que entrou de um lado, quebrou quase todos os dentes, e saiu do outro. Como é que tá, Zé?, Vou indo. Toma uma cerva aí, por minha conta!, Brigado. Como vão as coisas Mané? Vão indo bem, os negócios… Ninguém andou te incomodando?, Não, graças a Deus… Graças a mim, Mané, graças à mim, e nunca se esqueça disso, disse Covinha, dando uns tapinhas na face esverdeada do dono do bar.
Era dia de batida. Como sempre, o pessoal que cuidava do pedaço aproveitaria a subida da polícia pra descer até o asfalto e mudar de ares, mas antes, o Covinha, que era um tipo de relações públicas do morro, queria ter certeza se estava tudo bem, se ninguém estava insatisfeito, o que poderia ser incômodo, alguém dar com a língua nos dentes. Há tempos que os caras sacaram que não adiantava ameaçar o pessoal do morro que vez ou outra um abria o bico. Desde que mudaram de tática, passando a tratar bem as pessoas, dando dinheiro, comida, proteção, respeito etc, não aconteceu mais nenhuma cagüetagem. Isso era bom para ambos os lados, para eles, que podiam agir sossegados, e para nós, que podíamos viver tranqüilamente. Morar no morro é muito mais seguro do que morar no asfalto, pelo menos aqui, no Rio de Janeiro. Não existe mais aquele papo de que a avenida Atlântica é o paraíso terrestre, e o inferno é lá em cima. Quem mora no morro tá mais próximo de Deus.
E você Zé, tudo bem?, Tudo. E a faculdade?, Vai indo, teve aumento nas prestações, esse mês não sei se… Pra quanto foi?, Bem 87% de aumento, dá mais ou menos..., toma, e não se esqueça dos amigos quando virar doutor, hein? Agradeci a grana, que era bem mais do que eu precisava, e me mandei. Não gostava muito de receber grana desse pessoal, mas vendendo garrafas velhas, papelão e outras tralhas, é que não conseguiria estudar. Para eles, estavam comprando meu silêncio, mas eu, na verdade, mesmo que não fosse privilegiado pelos benefícios que ofereciam, num aperto qualquer não entregaria ninguém, não era minha natureza. No começo eu tentei explicar isso para o Covinha, mas ele disse Nós preferimos pagar para poder cobrar, entende? Entendo.
A tarde caía no morro. O céu, numa mescla de dia e noite, tomava uma coloração cor de cobre, onde nem o sol mais se via, tão menos a lua despontava. Chegava a hora da aula. Depois de quase uma semana… Fui pro barraco me preparar. Levaria só a grana que iria usar, o resto eu depositaria no banco amanhã, na cidade. Estava prestes a sair quando a frágil porta se rompe sob a fúria de ombros e divisas.
Parado aí, garoto!, Um, dois, três, cinco, sete policiais invadiram meu barraco. Não havia mais espaço, e por isso outros dois ficaram do lado de fora, espiando pela janela. Fui atirado ao chão pelo cutucão do cano de uma escopeta. Desembucha, onde mora o Zumbi, disse o policial da escopeta (Zumbi era o chefe da quadrilha, o cara mais procurado do Rio. O apelido ele ganhara da própria polícia, que depois de haver mandado ele para o hospital uma porção de vezes, não entendia como é que ele ainda estava vivo. Se somassem o número de tiros que Zumbi já levara, chegaria quase a cem). Sei não, respondi ao policial. Seu preto nojento filho da puta, vai falando, disse o outro, enquanto enfiava o coturno no meu estômago. Sei não, murmurei entre tosses e gemidos. E essa grana toda aqui?, perguntou outro que revistava o barraco enquanto me interrogavam, Deve ser para manter o silêncio, né?, Não senhor, Confessa filho da puta, ninguém virá salvar o teu rabo negro. Chutes, porradas, perguntas, coronhadas. Outra vez, e mais outra, Não sei, não sei, não sei. Corte de faca no peito, perguntas, Não sei. Corte de faca no braço, Não sei. Corte de faca na perna, no rosto, lágrimas minhas. Chamaram-me de maricas, mas eu não chorava de dor, chorava porque sabia que não escaparia dessa, nem se agora contasse o que queriam, por meu corpo estar muito marcado para ser deixado vivo, marcas da ignorância e do despreparo, do erro, da minha burrice, do meu orgulho, não importa, o que importa é que não poderia ser deixado solto por aí, em exposição, como uma obra de arte, uma inspiração social, uma aberração, se ao menos me ouvissem, mas não me ouviriam, eu poderia aparecer sem os braços que ninguém se importaria, imitação barata de mim mesmo, sem perspectivas, sem perigos, sem ressentimentos… o cacete! Se eu escapar mato um por um desses filhos da puta. Tiro no pé, perguntas, lágrimas minhas. Tiro na mão, perguntas, Não sei. Tiro no braço, perguntas, Não sei. Tiro no ombro, sem perguntas. Depois no outro e mais um tiro e outro e outro… Consegui contar oito, e só perdi a conta do número de tiros que levei quando uma densa e envolvente cortina preta, vinda não sei de onde, se pôs diante de meus olhos, com um leve aroma de rosas e velas.
Covinha acabara de chegar ao boteco do Mané. Pediu duas cervejas e três copos, um para ele, um para o Mané e outro para mim. Era um cara magrinho, tão miúdo que chegava a ser confundido, de costas, com um moleque. Chamavam-no Covinha pelas duas cavidades mais profundas que apresentava no rosto, uma em cada bochecha, feitas por um tiro de 32 que entrou de um lado, quebrou quase todos os dentes, e saiu do outro. Como é que tá, Zé?, Vou indo. Toma uma cerva aí, por minha conta!, Brigado. Como vão as coisas Mané? Vão indo bem, os negócios… Ninguém andou te incomodando?, Não, graças a Deus… Graças a mim, Mané, graças à mim, e nunca se esqueça disso, disse Covinha, dando uns tapinhas na face esverdeada do dono do bar.
Era dia de batida. Como sempre, o pessoal que cuidava do pedaço aproveitaria a subida da polícia pra descer até o asfalto e mudar de ares, mas antes, o Covinha, que era um tipo de relações públicas do morro, queria ter certeza se estava tudo bem, se ninguém estava insatisfeito, o que poderia ser incômodo, alguém dar com a língua nos dentes. Há tempos que os caras sacaram que não adiantava ameaçar o pessoal do morro que vez ou outra um abria o bico. Desde que mudaram de tática, passando a tratar bem as pessoas, dando dinheiro, comida, proteção, respeito etc, não aconteceu mais nenhuma cagüetagem. Isso era bom para ambos os lados, para eles, que podiam agir sossegados, e para nós, que podíamos viver tranqüilamente. Morar no morro é muito mais seguro do que morar no asfalto, pelo menos aqui, no Rio de Janeiro. Não existe mais aquele papo de que a avenida Atlântica é o paraíso terrestre, e o inferno é lá em cima. Quem mora no morro tá mais próximo de Deus.
E você Zé, tudo bem?, Tudo. E a faculdade?, Vai indo, teve aumento nas prestações, esse mês não sei se… Pra quanto foi?, Bem 87% de aumento, dá mais ou menos..., toma, e não se esqueça dos amigos quando virar doutor, hein? Agradeci a grana, que era bem mais do que eu precisava, e me mandei. Não gostava muito de receber grana desse pessoal, mas vendendo garrafas velhas, papelão e outras tralhas, é que não conseguiria estudar. Para eles, estavam comprando meu silêncio, mas eu, na verdade, mesmo que não fosse privilegiado pelos benefícios que ofereciam, num aperto qualquer não entregaria ninguém, não era minha natureza. No começo eu tentei explicar isso para o Covinha, mas ele disse Nós preferimos pagar para poder cobrar, entende? Entendo.
A tarde caía no morro. O céu, numa mescla de dia e noite, tomava uma coloração cor de cobre, onde nem o sol mais se via, tão menos a lua despontava. Chegava a hora da aula. Depois de quase uma semana… Fui pro barraco me preparar. Levaria só a grana que iria usar, o resto eu depositaria no banco amanhã, na cidade. Estava prestes a sair quando a frágil porta se rompe sob a fúria de ombros e divisas.
Parado aí, garoto!, Um, dois, três, cinco, sete policiais invadiram meu barraco. Não havia mais espaço, e por isso outros dois ficaram do lado de fora, espiando pela janela. Fui atirado ao chão pelo cutucão do cano de uma escopeta. Desembucha, onde mora o Zumbi, disse o policial da escopeta (Zumbi era o chefe da quadrilha, o cara mais procurado do Rio. O apelido ele ganhara da própria polícia, que depois de haver mandado ele para o hospital uma porção de vezes, não entendia como é que ele ainda estava vivo. Se somassem o número de tiros que Zumbi já levara, chegaria quase a cem). Sei não, respondi ao policial. Seu preto nojento filho da puta, vai falando, disse o outro, enquanto enfiava o coturno no meu estômago. Sei não, murmurei entre tosses e gemidos. E essa grana toda aqui?, perguntou outro que revistava o barraco enquanto me interrogavam, Deve ser para manter o silêncio, né?, Não senhor, Confessa filho da puta, ninguém virá salvar o teu rabo negro. Chutes, porradas, perguntas, coronhadas. Outra vez, e mais outra, Não sei, não sei, não sei. Corte de faca no peito, perguntas, Não sei. Corte de faca no braço, Não sei. Corte de faca na perna, no rosto, lágrimas minhas. Chamaram-me de maricas, mas eu não chorava de dor, chorava porque sabia que não escaparia dessa, nem se agora contasse o que queriam, por meu corpo estar muito marcado para ser deixado vivo, marcas da ignorância e do despreparo, do erro, da minha burrice, do meu orgulho, não importa, o que importa é que não poderia ser deixado solto por aí, em exposição, como uma obra de arte, uma inspiração social, uma aberração, se ao menos me ouvissem, mas não me ouviriam, eu poderia aparecer sem os braços que ninguém se importaria, imitação barata de mim mesmo, sem perspectivas, sem perigos, sem ressentimentos… o cacete! Se eu escapar mato um por um desses filhos da puta. Tiro no pé, perguntas, lágrimas minhas. Tiro na mão, perguntas, Não sei. Tiro no braço, perguntas, Não sei. Tiro no ombro, sem perguntas. Depois no outro e mais um tiro e outro e outro… Consegui contar oito, e só perdi a conta do número de tiros que levei quando uma densa e envolvente cortina preta, vinda não sei de onde, se pôs diante de meus olhos, com um leve aroma de rosas e velas.
voltar para Contos