que venha a tempestade

Nada me agrada mais do que poder me amuar num canto qualquer da casa, com meus pensamentos ebulindo impetuosamente na minha cabeça perturbada pelas diversas armadilhas cotidianas que não consigo me livrar, não tanto pela vontade, que esta me jorra do peito grande o suficiente e até demais, mas pela gravidade dos acontecimentos, pelo emaranhado de fios repressores e violentos que fui permitindo que me envolvessem durante estes mais de dez anos de vida morta e lugar incomum, sem perspectiva alguma de rompimento ou mínimo esgarçamento desta camisa de força emocional que tende só a encolher, encolher cada vez mais, feito couro molhado secando ao sol, sem se dar conta de que estou dentro, sem se importar com o espaço que meu corpo, embora magro e pequeno, ocupa neste invólucro, querendo juntar as paredes num centro de inanidade, tal qual meu coração, músculo oco, seca fonte de sentimentos que durante todo este tempo só encolheu dentro do meu peito, e a poeira do desuso aglutinada nas artérias e aortas, sem possibilidade de solo fértil para frutificar, horta já morta, não-nascida fica melhor, que assim como aquele que não parte não pode voltar, o que não cai não pode levantar, o que não ama não pode odiar e o que não odeia não pode amar — já que amor e ódio são o mesmo sentimento vistos de outra ótica — assim, o que não nasce não pode morrer, e isto me parece bem razoável pelas próprias leis da física e da psicanálise, embora não ache que sejam as leis da física ou da psicanálise que me fazem pensar assim, mas as leis da agonia, da repressão, da tortura, que nada mais são do que as leis do medo, do terror, o pavor do próximo golpe, do próximo choque, o pavor de estar inerme, inerte a tudo isto, passiva, à mercê de qualquer vontade vária da minha, que não compartilha com o que vou sentindo, de fazer o que bem quiser, traçar barbaramente suas linhas de dor e sofrimento sobre meu corpo, despregado de valores éticos ou morais, de compaixão, solidariedade ou mesmo dó, que é só dó o que consigo sentir de mim, não uma dó de comiseração, piedade, mas uma dó de tristeza, de dor, de luto, e só agora percebi, pois em todos estes anos só pensei em fazer minhas obrigações, minhas tarefas, impostas ou assumidas — embora impostas acabavam sendo todas, por falta de opção ou importância do que eu sentia — e procurava fazer com o máximo da dedicação que meu ser menor conseguia reunir em cada movimento, o máximo de boa vontade em cada prato lavado, em cada chão varrido, em cada piso encerado, em cada jantar preparado e guardado intato na geladeira, em cada roupa lavada e passada, em cada noite que fui obrigada a me abrir sem querer dividir minha intimidade, a cada orgasmo que não tive tempo de conhecer mas tinha que encenar, e cada vez que todo esse meu esforço de mulher e mãe era reconhecido com um tapa, uma vassourada, um chute no ventre, um dente amolecido por uma porrada, um prato de comida jogado na cara, eu só conseguia chorar, implorar perdão e remoer minha memória fraca em busca do que eu havia feito de errado, onde deveria melhorar, e pensava, como sou falha, como posso ocasionar tanta ira em alguém, estúpido ser imperfeito e defeituoso que sou, e tudo isto pensava enquanto, calada, tinha sobre mim o cumprimento do meu castigo através de sua ira, achando que no fundo merecia, e ele reforçava essa idéia me humilhando, remetendo-me aos mais inferiores sítios da minha alma, mostrando-me sempre o meu lugar, a minha condição desprivilegiada e subumana de existir, fazendo-me implorar a dignidade que a ele eu não merecia, mas ainda assim eu torcia para que tudo acabasse logo, para que ele não fizesse muito barulho ao me bater, para que fosse delicado ao quebrar a casa, torcia para que os filhos não ouvissem, que os vizinhos nada percebessem, e sobretudo, torcia para que eu melhorasse, para que não o obrigasse mais a executar essa minha sentença, nunca mais, e as soluções que eu tentara implantar na busca dum alívio a esse sofrimento se mostraram frágeis, débeis, que por mais que eu fugisse ele acabava me encontrando, por mais que eu pedisse paz ele não me ouvia, e sua ira se multiplicava com ironia, desapreço, dizendo que eu só sairia de casa quando ele quisesse, e a única solução que eu via, que eu conseguia idealizar frente ao seu soberano discurso e o meu constante fracasso em cumprir os ideais de esposa, mãe e escrava que ele me concebeu, era por demais egoísta, como ele mesmo já me mostrara, que minha morte só a mim beneficiaria.

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Não há no mundo recipiente de suficiente tamanho para acolher minha angústia, nem mesmo a complexidade dos seres mais perturbados seria capaz de suportar a dor e a mágoa que carrego em mim, amplificada ainda pela submissão, e só isso já seria material para mais outro tanto de melancolias, tentar entender por que agüentei tudo isto por tantos anos, por que deixei que isto ficasse suspenso, pairando sobre o fluido inexorável do tempo, como deixei que este ponto falso se enrolasse pelo meu corpo, me entranhando, me mumificando, sem que eu ousasse ao menos erguer a face, olhar nos olhos, emitir um simples porquê, mesmo que tímido e respeitoso, nem ao menos me defender eu tinha coragem, pois poderia despertar ainda mais a fúria que em mim ele deitava, e só sabia mesmo era esperar, ansiosa e temerosa, que ele chegasse em casa, não importava mais a hora, só importava o seu humor, que se chegasse bem humorado sabia que necessitaria de sexo, muito sexo e um mínimo de carinho, e lá estaria eu para satisfazer sua fome animalaça, mesmo sem vontade, afinal isto não importava a ele, mas se chegasse de mau humor, só me restava baixar a cabeça, me ajoelhar e asilar sua justiça, ímpeto de cólera, ele surdo dos meus sentimentos, eu cega de alguma vida, cega de mim, cega de ser, cega de qualquer possibilidade que arrematasse essa minha impossibilidade, ele sempre agindo e se impondo descomportadamente, vivendo, nunca eu, me contendo, reprimindo e guardando, mas toda cegueira um dia conhece a luz, nem que seja a luz divina e divisória deste mundo para o outro, que nos impele para fora de todas as prisões materiais e emocionais que tanto prezávamos, ou melhor ainda, como foi, uma luz desse mundo mesmo, que me tirou da cegueira imaginária em que me encontrava, abriu os pesados portões da masmorra do meu ser entrezado, adubou minha terra batida com sua seiva, regou minhas sementes com seu suor, e fez meu corpo se mostrar sem medo, fez-me fluir outros líquidos que jamais pensei produzir, fez-me sentir o cheiro do ar, a umidade da chuva, o calor do sol, e pude sentir que respirar é possível, que há vida aqui mesmo em mim, que sou alguém que pode ter vontades, desejos e caprichos, e que tudo isto pode ser saciado, que sou capaz de sentir, em forma de saudades, o querer estar junto de alguém que não me exige, não me conduz, apenas me é, e senti, pela primeira vez, um prazer imenso em me dar, dar-me em corpo, alma, suores, secreções, sangues, alegrias, tristezas, agonias, realizações e tudo que antes não me existia, longe das correntes que me prendiam às paredes lodosas dos meus vínculos, longe das culpas que me impunham flagelos, longe das imperfeições que tenho, mas não é isto que importa a essa luz, tão intensa e poderosa em seu brilho que todas as minhas possíveis obscuridades, minhas mais terríveis trevas ela é capaz de iluminar e clarear, torná-las transparentes ao ponto de se copularem às minhas dissimuladas qualidades, cada imperfeição que eu possa ter se transforma em duas, três, quatro virtudes, de forma tão pura e veemente que só posso sentir medo… um medo diferente, é certo, medo de não ser reflexiva o bastante para esse brilho, de não ser capaz de reciprocar sua luz, um receio de coisa tão boa que pode não ser verdade, um sonho que de súbito se acabe e me jogue no meio do mesmo caldeirão, no mesmo inferno, queimando no mesmo fogo das minhas paixões recolhidas, e a mesma besta a mexer o caldo do meu destino, com o tridente de seu verbo peçonhento, regulando o fogo de acordo com a temperatura de seu destempero, mas logo aposto no improvável, que mesmo a impossibilidade desse meu viver pleno é infinitamente mais compensadora que meu arrastar insano, minhas horas, meus dias dementes, numa vida que agora consigo figurar, e é por isso que esse sonho me move, me alimenta com uma força singular, excêntrica e estranha, me conduz por suas veredas claras e amáveis, permitindo uma vida que nunca poderia imaginar real, abrindo minha cela, escancarando as portas do meu ser, me deixando livre para fazer o que bem eu entender dessa vida que ainda me resta, com uma força renovadora, um respeito e um amor próprio que há muito não sentia, uma coragem para erguer a cabeça num solavanco e exigir dignidade, acatamento, que se não conquistado, hei de erigir minha existência em invocação ao que me é de aprumo; e é tal meu arbítrio, que posso até mesmo continuar exatamente onde estou…

Que venha a tempestade…

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